segunda-feira, 30 de março de 2020

A QUEM PERTENCE O CADÁVER HUMANO?

O título deste artigo pode parecer pesado, mórbido e bizarro. Pesado não pelo assunto em si, mas porque nos faz refletir sobre um assunto pelo qual há um interdito crescente na sociedade contemporânea.
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Embora, estranhamente nos deleitemos com grandes tragédias alheias: A menina jogada pela janela, a outra morta pelo namorado, menino arrastado pelas ruas em carro de alta velocidade, uma “turista alemã” vítima de um possível complô familiar para receber um alto seguro, ficamos "admirando" as caçambas repletas de cadávares, como foi o caso do Haiti, com olhos fixos na TV, e por aí vai.
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Paradoxalmente, a nossa morte e dos nossos parentes,entendemos ser assunto privado, não diz respeito a ninguém. Negamos e escondemos as doenças. As mortes, infelizmente, temos que proclamá-la ela é um assunto público, o óbito é publico, gera direitos e deveres aos vivos, se não o fosse, possivelmente diríamos: “Fulano está viajando”, como geralmente enganamos as crianças..
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Negamos a morte da mesma forma que negamos e escondemos os nossos insucessos, como se a morte fosse um fruto de nossa incapacidade de viver e não algo tão natural como o nascer...
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E um tema doloroso que sempre adiamos: A Morte. Principalmente quando se trata da nossa própria ou da daquelas pessoas a quem queremos bem. É algo doloroso, cruel, irreversível, incompreensível. Buscamos sempre para ele subterfúgios para dele fugir. Mas, infelizmente, não podemos é tema real, um dia a mais, outro a menos, ele está ali na porta, ou melhor em nós mesmos: Seremos cadáveres!
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Não mais seremos, seremos apenas “espólio” no que nos restou da labuta, daqueles dias que o nosso desejo de ter nos embotou a vista, perturbou nossas relações humanas, interferiu nas nossas relações amorosas... Muitas vezes deixamos de assumir amores – proibidos ou consentidos – pelo simples fato da inconveniência social, racial, étnica e, principalmente econômica... Pensávamos – nós e nossos pais – sermos eternos. Coitados!
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Deixamos a ambição e o preconceito ser maiores que nós e nossa felicidade!Mas, passados os anos, ou não, morremos. Viramos o que os juristas de até então designam de “coisa nula”.Triste, mas real. Seremos – somos – cadáveres. Prontos à inexistência. Imediatamente passíveis à podridão.
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Num primeiro momento há a cessação de todos os fenômenos vitais, totalmente, definitivamente. Todo o nosso organismo, antes tão organizado, entrou em colapso, nossas células, tecidos, órgãos vitais paulatinamente, misteriosamente vão deixando a vida. Enfim, morremos!
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E aí. Nós, eu e você, amigo leitor, seres humanos livres, impertencíveis a ninguém, deixamos de ser. Somos apenas um simples Cadáver, despojos, restos mortais e nossos bens (ou não bens) Espólio.

Passamos a ser uma “coisa” pertencente ao Estado. Isso mesmo ao Estado. Não somos propriedade absolutamente de ninguém. Mas ninguém ao mesmo tempo, pode absolutamente lançar a mão sobre o que éramos.
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O cadáver – nós já não somos – não pertence á família. O primeiro passo para constatar este fato é registrar o Óbito. Ou seja registrar a inexistência de alguém. Se alguém não mais existe, ele não é, ela não pertence a mais nada, ela é nula, já era...
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Daí por diante, conforme a causa mortis o cadáver – puro descarte e prova que ali existiu um CPF é propriedade do Estado. E o Estado nos quer? Ele não tem essa capacidade de querer, ou não, já somos parte integrante dele, o problema são os governos, a estes já bastam as responsabilidades com os vivos...
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A piedade cristã, felizmente, tratou de remediar essa questão juridicamente fria, e deu dignidade ao morto, e instituiu na legislação e na cultura, o respeito aos mortos, que na nossa legislação deu uma espécie de Estatuto dos Defuntos, não permitindo que os despojos humanos fossem tratados como lixo, ou simples coisas. Permitiu que a família ou aqueles a quem a proximidade o/a tenham como tal, dêem ao morto, a possibilidade de não virar peça de necropsia ou alimentos para urubus. Mas não esqueçamos os cadáveres não são propriedade de ninguém, por mais digno e belo que seja o monumento fúnebre e mais importante o morto.
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Mas queiramos ou não, nossos falecidos corpos são pertencentes ao Estado. Mas o Estado, nem a família, não tem o direito de arrancar qualquer parte do morto, e doá-los a ninguém se o “vivo” assim não o designasse. Não pode “cremar” ou dar outro destino senão o tradicional “enterro” sem que o Estado, através do Judiciário assim o determine, e neste caso com muita prudência, preservando a memória do “de Cujos”, as não ser por razões de Estado, in caso as epidemias ou o perigo á saúde pública. Mortos seremos, ou não, com grandes possibilidades, perigo, aos vivos.
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Triste, não é? Mas é a verdade!
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E por fim, caso você e eu, disponhamos de um jazigo digno, luxuoso, ou tenhamos nada, a não ser terra fofa sobre o nosso vil cadáver. Ninguém, nem nossos parentes, nem nossos amados familiares, que podem ser – ou não – sepultados amorosamente conosco, serão e seremos esquecidos, ossos e não ossos, em tão pouco tempo, que esse artigo é de uma inutilidade cadavérica.
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Quem sabe, discutiremos esse assunto no Céu!
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Descansemos em Paz!


Texto de Washington Peixoto Vieira, escrito na madrugada do dia 07 de abril de 2010.



Imagem:
1. A Lição de Anatomia do Dr. Nicolas Tulp, de 1632 (Mauritshuis, Haia. Obra de Rembrant.
2. Hans Baldung, Death and the Woman, c. 1518-1519.
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Algumas Referências: Philipe Ariès publicou a "História da Morte no Ocidente", traduzida no Brasil pela Editora Francisco Alves, do RJ, em 1977.
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Legislações sobre doação de órgãos ou tecidos:
Lei nº 8.489/97 - Lei dos Transplante;
Lei nº 9.394/97 - Caracterização do Doador presumido (parcialmente revogada);
Lei nº 10.211/2001 - Alteração da Lei 9.394/2001 - Condiciona a retirada de órgãos à autorizção do cônjuge ou parentes de maior idade na linha sucessória reta ou colateral.