sexta-feira, 5 de abril de 2019

MALASSOMBRADOS: A PROCISSÃO DAS ALMAS PENADAS

Pelos idos anos de 1894, aconteceram fatos extraordinários na antiga Vila Viçosa Real. Naqueles tempos o Brasil, respirava os ares da República, e a Igreja e Estado haviam cortado os laços de unidade, e o povo nada entendia do que acontecia e o bispo do Ceará exortava o seu rebanho “a orarem pela Igreja e Pela Pátria e premunindo-se contra os vícios à Santa Religião” alertava contra os “perigos do positivismo, do republicanismo e do protestantismo” (Carta Pastoral de 25 de março de 1893).

Eram tempos de mística e de ceticismo. De acomodação e revolta. Eram tempos difíceis!O mundo europeu, ainda não entrara em guerra, mas estava prestes a envolver-se na terrível carnificina de cristãos contra cristãos e a Rússia não caíra nas mãos dos comunistas. Mais isso era coisa distante, Viçosa nem rádio tinha e o que interessava era que por ali já escasseava a farinha de trigo e já não havia pão e foi neste clima que houve uma verdadeira revolta das almas, contavam os mais antigos. Se aqueles não se reviraram no túmulo, diante de tanto horror, da mudança de era e costumes que adviriam, suas almas, pelo menos, manifestaram-se de forma paranormal pelas ruas da cidade.
Assim, pois, narram que houve uma procissão de almas pelas ruas, nas altas horas, que só hoje mortos também poderiam confirmar, uma vez que estes foram as testemunhas oculares.

O velho cemitério da Rua da Cruz, ainda existia por volta de 1930, embora abandonado. Os ossos das vítimas da “Tragédia da Tabatinga” ainda estavam lá, os do cólera-morbo de 1860, já eram esquecidos. Os tatus, conhecidos e vorazes freqüentadores de cemitérios, ainda tinham seus buracos por ali, gatas pariam nas gavetas abertas dos velhos túmulos de barro cru, bodes e vacas pastavam e aqui e ali alguma ossada misturava-se com o mato, somente o velho cruzeiro do século XVII, à porta do campo santo tinha vida, era local de peregrinação, rezas e acender de velas para as almas do purgatório. Por volta de 1957, foi construído sob os alicerces antigos, o Hospital e Maternidade Coronel Felizardo de Pinho Pessoa.Por volta de 1850, começaram as proibições do enterro nas igrejas, pois os desprendimentos de gases e de odores fétidos, oriundos das sepulturas, já haviam sido sentidos no interior da igreja matriz. Os sanitaristas acusavam essa prática de ser a causadora de várias moléstias e epidemias urbanas, inclusive pestes que devastaram mais de um terço das populações no século XIX.

Foi neste contexto, aliado às legislações sanitárias que já entravam em vigor, que se fundou o cemitério público-cristão na região nordeste da cidade, que ficou sob administração eclesiástica dos vigários paroquiais. Até então, os cemitérios, eram considerados campos-santos, locais sagrados, uma extensão da igreja.

Segundo relatos o cemitério ficava “ao nordeste da cidade, no fim de uma das ruas melhores, ocupando quatrocentos palmos em quadro de terreno, que foi doado por dona Inocência Maria da Conceição, já falecida. Foi edificado em 1863 pelo reverendo missionário de então, o padre José Tomás de Albuquerque, atual cura de Santana da Ibiapaba, com o auxílio e trabalho do povo viçosense; é bem construído, sendo de pedras suas grossas paredes; está mal colocado, visto ter ficado dentro da cidade e ficar a população sujeita a receber inalações”. Mas “não se encontrava em todo o cemitério uma catacumba, um túmulo em que se recomendasse o trabalho artístico. Não obstante o modo por que foi doado o terreno, e as declarações do missionário construtor da obra para que as sepulturas fossem sempre dadas aos pobres gratuitamente, assim só aconteceu durante três anos” ¹ (Siqueira p. 172)

Em face à fragilidade das edificações de túmulos e mausoléus, feitos de precários tijolos o padre José Beviláqua, quando por volta de 1894, mandou demolir todos os jazigos e proibiu novas construções e passou a cobrar taxas de enterro dos pobres, conforme determinara o Ordinário do Ceará “para que daí em diante serem pagas as sepulturas e o rendimento ser fábrica para a matriz”. A medida episcopal ia de encontro aos costumes locais e principalmente o que ditava o testamento de Maria da Conceição, que o doara de tão boa fé. A população revoltada resolveu peticionar a revogação da taxa paroquial ao bispo do Ceará D. Joaquim José Vieira (in BARROS, História de Viçosa do Ceará p. 37/39, citado em SIQUEIRA, p 172).

Se os vivos permaneceram calados e acataram a medida, como sempre o é, os mortos não, de forma que em altas horas de uma noite sem lua, os moradores da Rua Grande, já adormecidos, perceberam que alguma coisa estranha, muito estranha, acontecia. Medrosos, como é da cultura local, alguns tiveram a coragem de ir até as janelas da rua, que geralmente eram elaboradas de vários tabuados de madeira corrida, e pelas brechas, viram uma esquisita procissão:

Vinte ou trinta vultos caminhavam postando velas acesas ás mãos. Saíram do cemitério, pela Rua Grande, dobraram em frente à casa do Senhor Zeca Batista, descendo pela Rua das Bananeiras e voltaram silenciosamente para o cruzeiro do cemitério, na Rua da Cruz. Não se viam rostos, nem pés, apenas os passos lentos e silenciosos...
No outro dia, alguns curiosos foram até o antigo cruzeiro, qual susto não levaram! Encontraram, em vez de cera de velas, ossos humanos ressequidos dispostos em redor da cruz.
Eram as almas penadas, levando seus próprios ossos, como que iluminados em forma de velas... dizem, ainda, que essa procissão ainda acontece, vez por outra, diante de alguma indignação ou calamidade.

REFERÊNCIAS:


SIQUEIRA, João Otávio de, Viçosa do Ceará. Notícias Esparsas; Fortaleza, 2005 – PDF baixado da Inrernert em maio de 2009.

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