sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

CANÇÃO EXÍLIO DE UM JUDEU ERRANTE


Migrante é o que sou!
Como judeu errante vivo de terra em terra.
Deixei o meu deserto,
Deixei meu oásis,
Deixei os meus amigos
Deixei a minha pátria
E cai no mundo
Como uma espécie de Cã,
O maldito deserdado de Noé.

Onde estão os meus parentes?
Onde estão os meus amigos?
Não sei.
Como velho cruzado em busca da Terra Santa
Tudo abandonei.
Meus olhos já idosos não enxergam bem
Mas vejo amigos e parentes, muitos até,
Do outro lado das montanhas da vida.

Migrante é o que sou!
Talvez como Ulisses volte para casa,
Mas talvez como Abraão, jamais retornarei.
Onde descansarão meus ossos?
Não sei.
Onde minha carne alimentará a terra?
Tão pouco posso afirmar.

Migrante é o que sou!
Onde estarão os meus amigos
Aqueles com que partilhei migalhas da existência
Terras do Sul? Terras do Norte?
Serão livres, como andorinhas no verão
Ou estarão acorrentados pela ideologia do sistema?
Não sei.

Migrante é o que sou!
Como um vira-latas pulguento
De feira em feira
Lambendo as sobras das civilizações,
Cantando e chorando as saudades,
Da velha terra, já de outros
Já não sou! Já não sei!


autor: Washington Luiz Pexoto Vieira, sobre si mesmo, em 09 de junho de 2010.

Um comentário:

AALECASTRO disse...

Augusto dos Anjos
Insônia


Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...


Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito a dentro?!


— Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ao mapa-mundi estranha.


A dispersão dos sonhos vagos reuno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
Desde os Cristãos até Giordano Bruno!


Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vício não faísca!


Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho.
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!


Por que cumpri o universal ditame!?
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Por que não evitei o precipício
Estrangulando minha carne infame?!


Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!


À proporção que a minha insônia aumenta
Hieroglifos e esfinges interrogo. . .
Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
Toda a alvorada esplêndida se ostenta.


Vagueio pela Noite decaída...
No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando sobre os campos largos
O derradeiro fósforo da Vida.


O Sol, equilibrando-se na esfera,
Restitui-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorfose
Nas minhas arcas cerebrais se opera.


O odor da margarida e da begônia
Subitamente me penetra o olfato...
Aqui, neste silêncio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!


Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corimbos,
Recordam santos nos seus próprios nichos.


Com o olhar a verde periferia abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
As maravilhas reais do meu Pau d'Arco


Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinário.


Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!