sexta-feira, 31 de outubro de 2025

 


ICÓ E SUAS REVOLUÇÕES LIBERTÁRIAS

Da chama republicana à abolição precoce: três momentos de coragem e ruptura no Sertão cearense

Por Washington Luiz Peixoto Vieira

Nestes sertões do Ceará, banhados pelo Salgado e pelas memórias de uma vila altiva, há uma história que não se cala. O Icó, hoje guardião de igrejas barrocas e sobrados coloniais, foi também palco — e, por vezes, alvo — de revoluções libertárias que desafiaram a ordem imperial e as correntes da escravidão.
Três momentos se destacam: a Revolução Pernambucana (1817), a Confederação do Equador (1824) e a Abolição local da escravidão (1883). Em todos, o espírito de liberdade soprou forte entre as ruas de pedra e os becos da antiga “Princesa do Sertão”.


A SOMBRA DE 1817: O PLANO QUE NÃO SE CUMPRIU

Em março de 1817, Pernambuco ergueu-se contra o domínio português e proclamou uma efêmera república. O ideal de liberdade contagiou as capitanias vizinhas — e Icó não ficou fora do mapa dos conspiradores.

Pesquisas recentes revelam que os líderes da Revolução Pernambucana pretendiam expandir o movimento pelo interior do Ceará, tendo a vila de Icó como um dos pontos estratégicos para a resistência. O historiador Sérgio Roberto da Silva (UEG) menciona a elaboração de um plano de ataque à vila, visando incorporá-la ao território libertário do Nordeste.

O plano, porém, nunca se concretizou. As tropas imperiais sufocaram a revolta antes que ela cruzasse os sertões cearenses. Ainda assim, o nome de Icó ficou registrado como parte do horizonte político do republicanismo nascente, prenúncio de um papel maior que viria poucos anos depois.



1824: QUANDO ICÓ FOI CAPITAL DO CEARÁ REVOLUCIONÁRIO

Sete anos depois, o estopim reacendeu. Em 1824, o Brasil recém-independente vivia sob a Constituição imposta por D. Pedro I — um texto centralizador, que desagradava aos ideais liberais do Nordeste. Assim nasceu a Confederação do Equador, movimento republicano e separatista que uniu Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

No dia 11 de julho de 1824, a Câmara Municipal de Icó reuniu-se em sessão solene e declarou desobediência ao governo imperial, proclamando um Governo Provisório confederado. Por alguns dias, Icó tornou-se a capital política do Ceará revolucionário.

As notícias corriam pelas estradas poeirentas: os ícoenses haviam aderido à causa da liberdade, erguendo-se contra o poder do Rio de Janeiro. Contudo, a vitória seria breve. Tropas fiéis ao Império marcharam sobre o sertão, reprimindo o levante com violência. Muitos foram presos, outros fugiram, mas o gesto ficou gravado na memória coletiva — Icó havia se insurgido.



1883: O BERÇO DA LIBERDADE NEGRA

Quase sessenta anos depois, o mesmo espírito libertário reapareceu sob outra forma — a libertação dos escravizados.
Em 25 de março de 1883, antes mesmo da famosa abolição de Redenção, os moradores de Icó reuniram-se em praça pública e concederam alforria a mais de duzentas pessoas escravizadas.

O ato foi simbólico e revolucionário: uma cidade do interior, movida por um sentimento humanitário, rompeu com o regime escravocrata cinco anos antes da Lei Áurea. Documentos municipais registram que senhores locais, influenciados por padres, professores e jornalistas, contribuíram com dinheiro para comprar as cartas de liberdade.

A data é celebrada até hoje como um marco da luta abolicionista cearense, consolidando o Icó como berço de liberdade no sertão do Império.


HERANÇA DE REBELDIA

Entre planos revolucionários, proclamações e alforrias, Icó construiu uma trajetória marcada pela insubmissão e pela esperança.
Foi, em três séculos distintos, testemunha da República sonhada, da resistência política e da libertação humana.

Hoje, ao caminhar pela Praça da Matriz, pela antiga Câmara e Cadeia ou pelas ruínas do século XIX, é possível sentir ainda o eco dessas vozes que clamaram por liberdade.
Icó não apenas viveu a história — fez dela um ato de coragem e precisa resgatar a sua história, que não se faz de shows em praça pública.


Fontes consultadas:

  • Revista História UEG (artigo sobre a Revolução de 1817 e o plano de Icó).
  • Portal oficial da Prefeitura Municipal de Icó.
  • Fundação Sintaf e Bahia.ws (bicentenário da Confederação do Equador).
  • Educapes/CAPES (projeto As Muitas Vozes de Icó – CE: Ensino de História Local e Memória).Arquivo Nacional (página temática Confederação do Equador) — para processos, ofícios e correspondência. Serviços e Informações do Brasil
  • Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional — jornais do período (proclamações, manifestos, listas). Hemeroteca PDF
  • Repositórios universitários (URCA, UFC, UNILAB, UF C, UCS) — para teses e dissertações mencionadas. eduCAPES+2Repositório UCS+2
  • Periódicos acadêmicos (SciELO, Revista do Instituto do Ceará, anais locais) — artigos sobre indígenas, participação local e memórias. scielo.br+1

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