quinta-feira, 10 de março de 2016

PROCISSÃO DOS PASSOS DO RECIFE





I. INTRODUÇÃO:

Nos últimos dias de quaresma a tradição católica desde a Idade Média, em forma catequética, incentiva (ou pelo menos incentivava, até as reformas pastorais de orientação modernizadora do Concílio Vaticano II), atos de piedade, voltadas à representação da Paixão de Cristo, que por vezes Passos da Paixão de Cristo, Vias Sacras ou Via Crucis com suas estações.

As procissões penitenciais, que faz memória do percurso de Cristo, desde o Horto das Oliveiras até seu sepultamento, que podem variar de 7, 14 ou 15 estações (ou passos), e o no último caso (15) a Ressurreição, cujo modelo foi adotado pelo papa João Paulo II  na noite da Sexta-feira Santa de 1991, no Coliseu, em Roma, quando o Pontífice resolveu estabelecer um maior vínculo entre as Estações da Via Sacra e os Evangelhos, cujas informações sobre a paixão de Cristo encontra-se dispersa pelos mesmos evangelhos.

Uma dessas tradições é a Procissão de Nosso Senhor dos Passos do Recife, também conhecida em muitos lugares como “procissão do encontro”, em razão de que um dos “passos” da procissão consiste no encontro da imagem de Jesus carregando a cruz encontrar-se com a imagem de sua mãe (Nossa Senhora das Dores ou Nossa Senhora da Soledade), com apenas, até então, constituída com os Sete Passos, tradicionalmente utilizados deste a instituição da procissão em 1654, data em que foi criada a Venerável Irmandade do Bom Jesus dos Passos do Corpo Santo.

Segundo MILFON (2013), “a tradição de sete igrejas no curso de peregrinações e procissões penitenciais é uma referência à cidade de Roma, a cidade das sete colinas, adaptada por Portugal e trazida para as cidades coloniais brasileiras, dos quais Recife incorporou com exatidão,cuja “lógica vivenciada pelo percurso do peregrino tornou-se reflexão para compreensão da cidade a partir do primeiro ano do pontificado de Sixto V (1585-1586). A cidade de Roma era planejada sob a égide de um urbanismo monumental de caráter religioso. O plano idealizado pelo pontífice e executado por Domenico Fontana, um dos grandes arquitetos da Renascença, previa o enlace das igrejas mais importantes e outros pontos centrais da cidade, norteados pela lógica vivenciada pelo percurso do peregrino que orientou a configuração do urbanismo em Roma”.



        II. OS PASSOS DO RECIFE:

     A Procissão dos Passos da Paixão de Cristo do Recife é uma das mais antigas manifestações cívico-religiosas do território brasileiro que se mantém viva. Certamente uma das últimas remanescentes das expressões culturais das antigas Confrarias Religiosas do Pernambuco do Século XVII, e como tal adota o modelo de Sete Passos, sendo: 1ª O Horto das Oliveiras; 2ª A Prisão; 3ª A Coluna; 4ª A Cruz; 5ª A coroação de espinhos; 6ª A Sentenaça e 7ª O Calvário.




      É um modelo de religiosidade popular trazida de Portugal, e de influência da Espanha com seus elementos barrocos, que as Confrarias Religiosas (Irmandades e Ordens Terceiras) desenvolviam com grande esplendor.

     
      III - AS ANTIGAS TRADIÇÕES:
      No Recife e Olinda, durante séculos, houve várias Procissões Quaresmais, tais quais a de Cinzas promovida pela Ordem Terceira de São Francisco, que "tinha laivos carnavalescos"(9) e a do Triunfo, promovida pela Ordem Terceira do Carmo, "com imensa pompa e longo acompanhamento. Levava catorze andores com cenas da paixão de Jesus" (9) e outras que foram sendo suprimidas. Ora pela falta de espiritualidade destes eventos, transformados em mera ostentação de poderio, rivalidades entre as Confraias, uma não "queria ficar por baixo" da outra, e pela própria decadência das irmandades e confrarias desde o final do século XIX e principalmente diante do modelo de igreja proposto pelo Concílio Vaticano II. .




(Imagem primitiva do Senhor Bom Jesus dos Passos, já existente em 1654)

      Todavia,
"Eram várias as procissões: das Chagas, dos Martírios, do Bom Jesus dos Pobres Aflitos, do Encontro, dos Passos, do Triunfo, do Enterro, da Ressurreição. Cada uma no seu bairro, da sua igreja, com seus admiradores e partidários. Algumas boliam com a cidade inteira. As cocheiras botavam para a rua todos os seus carros, de boleeiros metidos em sobrecasacas de botões dourados, cartolas, luvas. Os bondes da Caril e as maxambombas traziam gente pendurada nos estribos e nas portinholas. Desde a lordeza da Madalena e da Linha Principal ao pessoal pobre de Afogados e Santo Amaro, todos confluíam para o centro a fim de apreciar as mesmas cenas e os mesmos aspectos de todos os anos. Porque se há espetáculo que não mude é o das procissões". (10)

      Resta, nos dias atuais na cidade do Recife, apenas três tradicionais procissões: A que ora relatamos, que já não tem o esplendor antigo, a "Via Sacra Pública", saindo da Matriz da Boa Vista para a Igreja da Santa Cruz do Bom Jesus da Via Sacra, nas Sextas-Feiras Santas, que em tempos de outrora era realizada no penúltimo domingo da quaresma, e com uma perspectiva

 bem diferente da orientação "pastoral" atual e a Procissão do Senhor Morto, que sai da Matriz de Santo Antônio. .


         IV - A PROCISSÃO DOS PASSOS DO RECIFE E SUA VENERÁVEL IRMANDADE.


     Foi criada em 1654, juntamente com a Venerável Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. ³ " Além do aspecto religioso, a Procissão dos Passos está ligada à história política e sócio-cultural do Brasil. 
     A primeira Procissão dos Passos foi realizada em pagamento de uma promessa dos comandantes militares portugueses e brasileiros vencedores da Guerra Holandesa. Em 1654, na Igreja Matriz do Corpo Santo, então existente no bairro do Recife, o mestre de campo Francisco Barreto de Menezes, André Vidal de Negreiros, Antônio Dias Cardoso e João Fernandes Vieira, fundaram a "Venerável Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos do Corpo Santo", o que seria o embrião do Exército Brasileiro. 
     No mesmo ano realizaram-se as procissões do Encerro e dos Passos, saindo da sua igreja sede para a igreja do Convento de Nossa Senhora do Carmo, de Olinda" 1 http://iconacional.blogspot.com/2008/05/pensamento-de-eckhart-tolle.html


      Mario Sette em sua obra Maxambombas e maracatus, assim descreve a Procissão dos Passos

"A procissão dos Passos sempre teve no Recife honras de esplendor e de fama. Marcava mesmo uma etapa do ano. Um mês antes, quem dispunha de recursos, tratava de encomendar o vestido de seda preta lavrada ou de gorgorão. As mocinhas contentavam-se com as cambraias de seda com salpicos. As matronas exigiam dos maridos as capas de damassé com vidrilhos e as severas capotas com enfeites de veludo. Dos guarda-roupas para o banho de benzina saiam croisés e fraques de casemiras negras. Quem morava em rua onde passava o cortejo, tomava precauções. Era preciso robustecer a munição da dispensa. As famílias amigas e os parentes não faltavam. No Recife quieto e silencioso desse tempo, ao quebrar do meio-dia começavam as igrejas a dobrar.Não havia bondes elétricos, nem caminhões, nem automóveis de escapação aberta para infernar os ouvidos, e, por isso, o toque das igrejas tomava ares de um escândalo de ruídos. Os livre-pensadores queixavam-se, explodiam. As irmandades passavam, de cruzes alçadas, para o Carmo. Na quinta-feira era a procissão chamada de encerro, porque a imagem do Senhor dos Passos ia do Corpo Santo ao Carmo, coberta. Ao escurecer, o Corpo Santo iniciava os seus dobres lentos, dolorosos, tristes. As ruas do velho bairro do Recife pouco a pouco se movimentavam e o comércio em grosso fechava por completo. Grupos iam se adensando pelas calçadas e pelas pontes. Varandas enchiam-se. Punham-se nas janelas e sacadas castiçais com velas protegidas por mangas de vidro. Nos Arcos da Conceição e de Santo Antônio havia também muitas luzes. Os vetustos sobradões da rua da Cadeia, de ordinário fechados e desertos, ganhavam uma vida que eles só haviam conhecido em épocas mais remotas. O longo, belo e tocante cortejo noturno saía por volta das 7 horas e vinha se estendendo pela ponte do Recife para ganhar o bairro vizinho. Duas imensas e tremulejantes fileiras de barandões acesos com umas angélicas de papel de seda resguardando as chamas. Entrava pela rua do Crespo, transpunha a pracinha, enfiava-se por Cabugá e Nova... Em todo trajeto gente muita à espera. A imagem de Jesus, velada por um dossel de seda roxa, era carregada pelos oficiais da Guarda Nacional. Via-se apenas a ponta da cruz de fora. Músicas, povo. E um cheiro de incenso que ficava depois por alguns momentos nas ruas vazias... No outro dia, à tarde, voltava o Senhor dos Passos à sua igreja. O comércio cerrava as portas mais cedo. Nas esquinas os mesmos grupos clássicos de mulheres que vinham de longe e traziam crianças que choramingavam. Todos queriam "pegar canto". Velhotas arengando. Moleques tomando pagode com as beatas de lenços brancos nas cabeças e de balandraus ruços. Rodavam carros com famílias lordes. Abriam-se varandas de primeiros andares que serviam de depósitos das lojas. E enchiam-se os prédios da rua da Cadeia, da rua do Cabugá, da rua Nova... Iam transitando anjos procedendo das casas das "vestideiras". Algumas eram célebres em São José e tinham muito osto em fazer as saias armadas, bem redondas, ensinando as crianças a gingar, - fazer o "passo" dos querubins. Afinal surdia a procissão, depois de uma expectativa de duas ou três horas, ouvindo os sinos e espreitando a boca da rua.- Lá vem o pendão?- Minha gente! Corra!- Vem perto! Havia sempre alguém lá por dentro e todos acorriam à varanda. Aí é que era o pega para arranjar canto. Os mais sabidos já estavam abancados. Os donos da casa sempre ficavam por trás, trepados em cadeiras. E o grande pendão, com o seu S. P. Q. R. que o povo traduzia por "sopa, pão, queijo, rapadura", passava seguro pelo Rodrigão, o homem mais alto do Recife. Em seguida os guiões das Almas e do Sacramento.", (in Mario Sette- Moxambolas e Maracatus Secretaria de Educação e Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife, Prefeitura da Cidade do Recife, 1981 - 252 páginas). 

(Três imagens de Jesus Flagelado usadas nas estações dos Passos, de possível autoria de Manoel da Silva Amorim - Recife, 1780 - 1873).
       Com o passar dos séculos a Procissão dos Passos foi adequando-se às novas realidades, mas persistindo heroicamente até os dias atuais, distantes do século XVII e da hegemonia católica, todavia continua com os mesmos elementos tradicionais e a força viva de seus membros.



(Imagens de Santa Maria Madalena e Nossa Senhora da Soledade, componentes do último passo, o Calvário), e possível autoria de Manoel da Silva Amorim - Recife, 1780 - 1873). 


   Hoje um dos grandes desafios dessa irmandade e de sua Procissão dos Passos é a sua continuidade, particularmente pela incorporação de jovens, diante do mundo secular, onde as tradições, típicas da hegemonia católica de outrora, mudaram o seu vértice para do âmbito cultural-religioso.

      O declínio dessa salutar tradição arraigada por 363 anos na identidade recifense, poderá ser mais uma vez motivo da cidade do Recife ir perdendo a sua própria identidade, e mergulhando cada vez mais no espírito do mundo globalista, e a própria Igreja Católica local viver apenas de monumentos históricos sem vida e gente, como já acontece em várias cidades da Europa secularizada .


REFERÊNCIA E CITAÇÕES:

1 - http://www.fisepe.pe.gov.br/cepe/supl/html/mat5.htm2. Coelho, Beatriz. Devoção E Arte : Imaginária Religiosa Em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo , 2005;3. Freyre, Gilberto, and Luís Jardim. Guia Prático, Histórico E Sentimental Da Cidade Do Recife. 1934, pag. 20. 4 - Fernando Pio - em Roteiro de arte sacra. Rio, de Janeiro: MEC, 1960, 131 p. il., p. 52 5. Fonte: http://www.fisepe.pe.gov.br/cepe/supl/html/mat7.htm; 6. As obras de Manoel da Silva Amorim, identificadas através de documentos relativos a pagamentos, segundo o historiador Fernando Pio foram elaboradas entre 1835 e de 1871, portanto, até dois anos antes da morte. A imagem do Senhor dos Passos é da primeira metade do século XIX. 7.PIO, Fernando. Imagens, arte sacra e outras histórias;. Recife, 1977. 8. CASCUDO, Luís Câmara, Literatura oral no Brasil – Ed. José Olímpio, 1952 – 2ª edição, Rio, 1978 . 9. PEREIRA, José Carlos. O encantamento da Sexta-Feira Santa: manifestações do catolicismo no Brasil. http://books.google.com/books?id=uij69YoStB4C&pg=PA122&dq=prociss%C3%B5es+quaresmais+%2B+recife&hl=pt-BR&cd=3#v=onepage&q=prociss%C3%B5es%20quaresmais%20%2B%20recife&f=falsehttp://www.jangadabrasil.com.br/marco19/pn19030c.htm 10.SETTE, Mário. Maxambombas e maracatus) http://www.jangadabrasil.com.br/abril20/pa20040b.htm Ler mais sobre o assunto: http://www.fisepe.pe.gov.br/cepe/supl/html/mat5.htm Chamadas: Confrarias religiosas, Irmandades, Ordem Terceira, Recife, Brasil solonial, expressões culturais imateriais confrarias irmandades recife pernambuco

MILFON, Magna Lícia Barros. O processo de transformação da cidade do Recife através da prática urbana dos percursos festivos. 2013. Dismonível em:< http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/view/4608> Acesso: 22 fev. 2017.
Matéria atualizada em 04.03,2017.

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