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Embora, estranhamente nos deleitemos com grandes tragédias alheias: A menina jogada pela janela, a outra morta pelo namorado, menino arrastado pelas ruas em carro de alta velocidade, uma “turista alemã” vítima de um possível complô familiar para receber um alto seguro, ficamos "admirando" as caçambas repletas de cadávares, como foi o caso do Haiti, com olhos fixos na TV, e por aí vai.
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Paradoxalmente, a nossa morte e dos nossos parentes,entendemos ser assunto privado, não diz respeito a ninguém. Negamos e escondemos as doenças. As mortes, infelizmente, temos que proclamá-la ela é um assunto público, o óbito é publico, gera direitos e deveres aos vivos, se não o fosse, possivelmente diríamos: “Fulano está viajando”, como geralmente enganamos as crianças..
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Negamos a morte da mesma forma que negamos e escondemos os nossos insucessos, como se a morte fosse um fruto de nossa incapacidade de viver e não algo tão natural como o nascer...
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E um tema doloroso que sempre adiamos: A Morte. Principalmente quando se trata da nossa própria ou da daquelas pessoas a quem queremos bem. É algo doloroso, cruel, irreversível, incompreensível. Buscamos sempre para ele subterfúgios para dele fugir. Mas, infelizmente, não podemos é tema real, um dia a mais, outro a menos, ele está ali na porta, ou melhor em nós mesmos: Seremos cadáveres!
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Não mais seremos, seremos apenas “espólio” no que nos restou da labuta, daqueles dias que o nosso desejo de ter nos embotou a vista, perturbou nossas relações humanas, interferiu nas nossas relações amorosas... Muitas vezes deixamos de assumir amores – proibidos ou consentidos – pelo simples fato da inconveniência social, racial, étnica e, principalmente econômica... Pensávamos – nós e nossos pais – sermos eternos. Coitados!
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Deixamos a ambição e o preconceito ser maiores que nós e nossa felicidade!Mas, passados os anos, ou não, morremos. Viramos o que os juristas de até então designam de “coisa nula”.Triste, mas real. Seremos – somos – cadáveres. Prontos à inexistência. Imediatamente passíveis à podridão.
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Num primeiro momento há a cessação de todos os fenômenos vitais, totalmente, definitivamente. Todo o nosso organismo, antes tão organizado, entrou em colapso, nossas células, tecidos, órgãos vitais paulatinamente, misteriosamente vão deixando a vida. Enfim, morremos!
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E aí. Nós, eu e você, amigo leitor, seres humanos livres, impertencíveis a ninguém, deixamos de ser. Somos apenas um simples Cadáver, despojos, restos mortais e nossos bens (ou não bens) Espólio.
Passamos a ser uma “coisa” pertencente ao Estado. Isso mesmo ao Estado. Não somos propriedade absolutamente de ninguém. Mas ninguém ao mesmo tempo, pode absolutamente lançar a mão sobre o que éramos.
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O cadáver – nós já não somos – não pertence á família. O primeiro passo para constatar este fato é registrar o Óbito. Ou seja registrar a inexistência de alguém. Se alguém não mais existe, ele não é, ela não pertence a mais nada, ela é nula, já era...
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Daí por diante, conforme a causa mortis o cadáver – puro descarte e prova que ali existiu um CPF é propriedade do Estado. E o Estado nos quer? Ele não tem essa capacidade de querer, ou não, já somos parte integrante dele, o problema são os governos, a estes já bastam as responsabilidades com os vivos...
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A piedade cristã, felizmente, tratou de remediar essa questão juridicamente fria, e deu dignidade ao morto, e instituiu na legislação e na cultura, o respeito aos mortos, que na nossa legislação deu uma espécie de Estatuto dos Defuntos, não permitindo que os despojos humanos fossem tratados como lixo, ou simples coisas. Permitiu que a família ou aqueles a quem a proximidade o/a tenham como tal, dêem ao morto, a possibilidade de não virar peça de necropsia ou alimentos para urubus. Mas não esqueçamos os cadáveres não são propriedade de ninguém, por mais digno e belo que seja o monumento fúnebre e mais importante o morto.
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Mas queiramos ou não, nossos falecidos corpos são pertencentes ao Estado. Mas o Estado, nem a família, não tem o direito de arrancar qualquer parte do morto, e doá-los a ninguém se o “vivo” assim não o designasse. Não pode “cremar” ou dar outro destino senão o tradicional “enterro” sem que o Estado, através do Judiciário assim o determine, e neste caso com muita prudência, preservando a memória do “de Cujos”, as não ser por razões de Estado, in caso as epidemias ou o perigo á saúde pública. Mortos seremos, ou não, com grandes possibilidades, perigo, aos vivos.
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Triste, não é? Mas é a verdade!
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E por fim, caso você e eu, disponhamos de um jazigo digno, luxuoso, ou tenhamos nada, a não ser terra fofa sobre o nosso vil cadáver. Ninguém, nem nossos parentes, nem nossos amados familiares, que podem ser – ou não – sepultados amorosamente conosco, serão e seremos esquecidos, ossos e não ossos, em tão pouco tempo, que esse artigo é de uma inutilidade cadavérica.
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Quem sabe, discutiremos esse assunto no Céu!
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Descansemos em Paz!
Texto de Washington Peixoto Vieira, escrito na madrugada do dia 07 de abril de 2010.
Imagem:
1. A Lição de Anatomia do Dr. Nicolas Tulp, de 1632 (Mauritshuis, Haia. Obra de Rembrant.
2. Hans Baldung, Death and the Woman, c. 1518-1519.
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Algumas Referências: Philipe Ariès publicou a "História da Morte no Ocidente", traduzida no Brasil pela Editora Francisco Alves, do RJ, em 1977.
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Legislações sobre doação de órgãos ou tecidos:
Lei nº 8.489/97 - Lei dos Transplante;
Lei nº 9.394/97 - Caracterização do Doador presumido (parcialmente revogada);
Lei nº 10.211/2001 - Alteração da Lei 9.394/2001 - Condiciona a retirada de órgãos à autorizção do cônjuge ou parentes de maior idade na linha sucessória reta ou colateral.
Um comentário:
Augusto dos Anjos
Mistérios de um fósforo
Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.
Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psiquê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!
E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
— Cinza, síntese má da podridão,
"Miniatura alegórica do chão,
"Onde os ventres maternos ficam podres;
"Na tua clandestina e erma alma vasta,
"Onde nenhuma lâmpada se acende,
"Meu raciocínio sôfrego surpreende
"Todas as formas da matéria gasta!"
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!
Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto,
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!
E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.
Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!
É o caos da ávita víscera avarenta
— Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! —
Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo ainda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
É a flor dos genealógicos abismos
— Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. —
Depois, é o céu abscôndito do Nada.
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!
Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!
Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.
Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!
Em cismas filosóficas me perco
E, vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Noniliões de moléculas de esterco.
Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;
Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!
Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!
O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!
Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjecção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!
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